terça-feira, 11 de outubro de 2016

Rodeios e vaquejadas podem se tornar patrimônio cultural do país



O Projeto de Lei da Câmara, identificado no Senado sob o nº 24, de 2016 (Projeto de Lei nº 1.767, de 2015, na Casa de origem), do Deputado Capitão Augusto, que eleva o Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestação cultural nacional e de patrimônio cultural imaterial está a um passo de ser aprovado no Senado.

O PL foi aprovado na Câmara em caráter conclusivo e encaminhado ao Senado, onde foi encaminhado à Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE), em caráter exclusivo, e já recebeu um parecer pela aprovação do relator, o Senador Otto Alencar - PSD - BA.

Curiosamente o projeto de lei em questão avança a passos largos e na surdina, mesmo com a Consulta Pública, no site do Senado, demonstrar que o número de pessoas contrárias a aprovação do PL é quase três vezes maior.

"Patrimônio cultural imaterial ou patrimônio cultural intangível é uma categoria de patrimônio cultural definida pela Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial e adotada pela UNESCO, em 2003.Abrange as expressões culturais e as tradições que um grupo de indivíduos preserva em respeito da sua ancestralidade, para as gerações futuras." https://pt.wikipedia.org/wiki/Patrim%C3%B4nio_cultural_imaterial

Evidentemente não é esse o caso dos Rodeios que não é cultura de nosso país, mas um evento copiado dos estados Unidos, não apenas nas provas que envolvem os animais, mas nas vestimentas dos peões. O primeiro registro de Rodeios no país data da década de 50, na cidade de Barretos. Não é uma cultura em nosso país, mas uma cultura inventada.

No entanto, se elevado à condição de patrimônio cultural imaterial o Rodeio terá sua proibição comprometida.

Como bem observa o Dr. Fausto Luciano Panicacci, Promotor de Justiça em São Paulo, Doutorando pela Escola de Direito da Universidade do Minho (Portugal), na íntegra aqui

"Em não poucas oportunidades, seja em defesas apresentadas em Juízo, seja quando questionados pelos meios de comunicação, organizadores e partidários da realização dos rodeios procuram sustentar que tais eventos seriam legitimas “manifestações culturais”, pelo que deveriam ser não só toleradas, como, inclusive, incentivadas.

Não é o caso. As diversas modalidades compreendidas no “circuito completo” - é por demais sabido - foram há não muito “importadas” da cultura dos Estados Unidos da América. De fato, basta observar que os próprios nomes das modalidades (“calf roping”, “bulldogging”, etc.) são apresentados em Língua Inglesa.

Nos eventos, os peões ostentam vestimentas que nada têm que ver com as tradições do campo brasileiro, apresentando-se com jaquetas de couro com franjas (incompatíveis até com o tropical clima do Brasil), e cintos de enormes fivelas (em regra, com inscrições em Inglês), em visual assemelhado ao dos cowboys do “Velho Oeste” americano, popularizados nos filmes (também americanos) ditos “western” – e nada parecido com o do legítimo sertanejo ou caipira brasileiro. Aliás, diga-se de passagem, o “espetáculo” se desenvolve ao som de musica country (também norte-americana).

A par disso, as “demonstrações” que têm vez e lugar na arena de rodeio passam distante – e muito –das práticas rurais do Brasil.
Não faz parte do cotidiano do homem do campo brasileiro a realização de montarias voltadas, única e exclusivamente, a aferir o desempenho de um humano em se manter sobre animal que corcoveia ao ter um sedém contraindo a virilha e esporas cravadas na região do pescoço.

Também não faz parte do cotidiano deste homem do campo a prática de laçadas de bezerros de poucos dias de vida. Em caso de necessidade de imobilização (v.g., para a cura de ferimentos ou aplicação de vacinas), os animais são “tocados” até currais (esta sim, tradição “boiadeira”, arraigada na cultura nacional) e conduzidos a “seringas”, corredores estreitos que permitem a imobilização necessária.

Tampouco faz parte do referido cotidiano a derrubada de animais ao solo (muito menos por peão que sobre ele salte, de cima de eqüino), ou a laçada em que tal animal é “esticado” (como no “team roping”), posto que tais práticas colocam em risco a incolumidade física e a vida dos animais - algo nada desejado por quem retira seu sustento da comercialização daqueles."
Merecem também destaque alguns trechos do brilhante Acórdão (Apelação n.º 0013772-21.2007.8.26.0152), nas sábias e inspiradoras colocações do Exmo. Desembargador Renato Nalini, onde os animais tiveram seus direitos reconhecidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo:

"Ainda que se invoque a existência de uma legislação federal e estadual permissiva, a única conclusão aceitável é aquela que impede as sessões de tortura pública a que são expostos tantos animais...
E é evidente que os animais utilizados em rodeios estão a reagir contra o sofrimento imposto pela utilização de instrumentos como esporas, cordas e sedém. A só circunstância dos animais escoicearem, pularem, esbravejarem, como forma de reagir aos estímulos a que são submetidos, comprova que não estão na arena a se divertir, mas sim sofrendo indescritível dor.

Não importa o material utilizado para a confecção das cintas, cilhas, barrigueiras ou sedém (de lã natural ou de couro, corda, com argolas de metal), ou ainda o formato das esporas (pontiagudas ou rombudas), pois, fossem tais instrumentos tão inofensivos e os rodeios poderiam passar sem eles.
 Em verdade, sequer haveria necessidade dos laudos produzidos e constantes dos autos para a notória constatação de que tais seres vivos, para deleite da espécie que se considera a única racional de toda criação, são submetidos a tortura e tratamento vil...
Tampouco convence a alegação de que a festa de rodeio é tradição do homem do interior e faz parte da cultura brasileira - como se isso justificasse a crueldade contra animais. As festas hoje realizadas em grandes arenas, com shows, anunciantes e forte esquema publicitário, nada têm de tradicional, no máximo constituem exemplo de um costume adotado por parcela da população - essa sim prática reiterada e difundida - de copiar e imitar estrangeirices, o country da cultura norte-americana. Sua proibição - no que tem de martirizante aos animais - não causará dano algum à cultura bandeirante ou nacional...
Aparentemente a humanidade regride. (...) . Em pleno século XXI há quem se entusiasme a causar dor a seres vivos e se escude na legalidade formal para legitimar práticas cujo primitivismo é inegável."


Paulo Affonso Lemes Machado (Direito ambiental brasileiro. 10ª ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 54), doutor "Honoris causa", por notório saber jurídico-ambiental, em comentário ao art. 32 da Lei nº. 9.605/98, diz que:

“Atos praticados ainda que com caráter folclórico ou até histórico, estão abrangidos pelo art. 32 da Lei nº. 9.605/98, e devem ser punidos não só quem os pratica, mas também, em co-autoria, os que os incitam, de qualquer forma.”
Analisando o teor do artigo 225 da Constituição Federal, Paulo Affonso Leme Machado (Direito Ambiental Brasileiro, 20ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2012, p. 167.), asseverou:

“A Constituição teve o mérito de focalizar o tema de proibir a crueldade contra os animais. O texto constitucional fala em ‘práticas’ – o que quer dizer que há atos cruéis que acabam tornando-se hábitos, muitas vezes chamados erroneamente de manifestações culturais”.

Diferente não foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal, de que muito embora o direito de manifestação cultural esteja consagrado no texto constitucional, este não pode ultrapassar a fronteira de outra regra constitucional que veda a prática de atos cruéis contra animais. Segue a ementa do julgamento do Recurso Extraordinário nº 153.531, que trata do caso da “farra do boi”, de relatoria do Ministro Marco Aurélio julgado no ano de 1997:

COSTUME - MANIFESTAÇÃO CULTURAL - ESTÍMULO - RAZOABILIDADE - PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA - ANIMAIS - CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado "farra do boi". (RE 153531, Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 03/06/1997, DJ 13-03-1998 PP-00013 EMENT VOL-01902-02 PP-00388)

Ao longo do tempo, sob o pretexto de garantir o direito constitucional à manifestação cultural, para satisfazer interesses econômicos e de entretenimento de uma parcela de determinada comunidade, a crueldade contra animais vinha sendo admitida nos rodeios, farras do boi, vaquejadas, rinhas, etc., porém com a citada decisão do STF se estabeleceu a oportunidade de que sejam proibidos todos os eventos, ou práticas, que submetam os animais à crueldade, com tal argumentação.

Por outro lado, a alegação de que milhares de pessoas possam retirar seu sustento da atividade em questão não é hábil para convencer como “argumento econômico”. Significativa parcela da população também retira seu sustento e sustenta seus familiares com recursos advindos de meios ilícitos, o que não legítima a atividade. Importante ressaltar que todas as atividades ilegais são, em regra, extremamente lucrativas e geram milhares, talvez milhões, de empregos.

O mundo clama por paz. Para podermos ser responsáveis socialmente, não devemos caminhar na direção oposta.




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